Talvez você já esteja cansado de tanto ouvir falar sobre esse termo nos últimos tempos. Basta ler a CNBC ou a Bloomberg com certa frequência que logo você verá algum player anunciando sua mais nova plataforma de streaming, como se fosse algo realmente inovador. Com o cenário competitivo do mercado de streaming se tornando cada vez mais acirrado, é natural que algumas questões sobre o tema possam surgir, dentre elas: Como a Netflix conseguiu criar uma vantagem competitiva tão grande em relação aos seus concorrentes? Por que todas essas companhias demoraram tanto para entrar neste mercado? E o mais importante: será que a Netflix vai perder a sua hegemonia?
Uma década de vantagem

Recentemente, o lendário empresário e investidor Barry Diller — um dos maiores nomes do setor de mídia nos EUA — deu uma declaração interessante e que nos ajuda a entender o porquê da Netflix estar tão à frente dos seus competidores: “A Netflix ganhou essa guerra anos atrás, eles são os únicos que têm a escala e o momentum necessários para manter esses investimentos lunáticos em conteúdo.”
Só um parênteses interessante sobre Barry Diller. É que em 2016 ele previu que Jeff Bezos se tornaria o homem mais rico do mundo entre 5 a 6 anos. Dito e feito: Em 2020, Jeff Bezos se tornou o homem mais rico do mundo segundo a revista Forbes, exatamente como Diller havia previsto.
Mas voltando ao streaming, a fala de Diller explica um ponto muito importante e que talvez você não tenha se atentado. O fato da Netflix ter ficado praticamente uma década sem concorrentes. Um fenômeno semelhante ao que aconteceu com Jeff Bezos e a AWS (Amazon Web Services), que ficou sete anos sem nenhum competidor. Em qualquer mercado, um bom CEO pode construir uma vantagem competitiva considerável operando tantos anos sem concorrência. Quando estes CEOs são Jeff Bezos e Reed Hastings, o resultado é o que todos nós já sabemos: domínio do mercado.
Apenas contextualizando, o serviço de streaming da Netflix foi ao ar em janeiro de 2007, dez anos após a companhia ter sido fundada por Reed Hastings e Marc Randolph. Antes disso, o foco da companhia e a sua principal fonte de receita era a locação de DVDs por correios, mercado em que competia diretamente com a então poderosa Blockbuster, a maior rede de locadoras dos Estados Unidos.

Para os mais jovens leitores: antigamente, se você quisesse assistir um filme na sua casa, você tinha que se deslocar até uma locadora de vídeos, escolher um filme e alugar. Depois de assistir, você precisava devolver o filme em um determinado prazo. O problema era que, caso você atrasasse a devolução do filme, era preciso pagar uma multa.
Como muitas pessoas acabavam esquecendo de devolver a tempo, a Blockbuster ganhava milhões de dólares só com essas taxas. Pra você ter uma ideia, em 2000 a companhia faturou cerca de US$ 800 milhões com multas de atraso, o que representava 16% de toda sua receita. Sendo assim, o serviço de locação por correios da Netflix começou a ganhar muita popularidade porque facilitava e muito a vida dos clientes.
Primeiro, o cliente não precisava se deslocar até uma locadora e sim, receber o filme de sua preferência no conforto da sua casa. Segundo e mais importante, ao contrário da Blockbuster, a Netflix não cobrava taxas de atraso dos seus clientes. Foi essa estratégia que fez com que a Netflix crescesse de forma acelerada já nos primeiros anos da empresa.

E uma curiosidade interessante. Em 2000, os fundadores da Netflix tentaram vender a empresa para a Blockbuster por US$ 50 milhões. A Blockbuster não só recusou a oferta, como o CEO da companhia na época, John Antioco, riu da cara dos fundadores na Netflix. Mas quem riu por último foi a Netflix, que hoje vale mais de US$ 140 bilhões.
Mas na época, com a oferta recusada, Hastings e Randolph não tiveram outra alternativa a não ser seguir o seu caminho da Netflix sem o apoio da Blockbuster. Nessa época a Blockbuster tinha 9 mil unidades e um faturamento de US$ 5,9 bilhões. Já a Netflix, por outro lado, era apenas uma startup que muitos achavam que não sobreviveria com o estouro da bolha da internet, em 2000. Dez anos depois, o que aconteceu foi justamente o inverso. A Netflix se tornou uma gigante e a Blockbuster decretou falência
Tudo indicava que, após tirar do jogo o seu maior competidor, a Netflix continuaria com a estratégia que havia levado a companhia a atingir o sucesso, afinal, time que está ganhando não se mexe, correto? Errado. No ano seguinte com pedido de falência da Blockbuster, em 2011, Reed Hastings ativou o modo “só os paranoicos sobrevivem” de Andy Grove (lendário ex-CEO da Intel) e resolveu pisar no acelerador para fazer a transição do modelo de negócios da Netflix para focar 100% no streaming. A abordagem agressiva de Hastings, que implementou uma série de iniciativas estratégicas em 2011, assustou Wall Street e fez com que as ações da Netflix despencassem 80% no ano.
Visão de longo prazo

Reed Hastings, como todo grande CEO, ignorou completamente a histeria de curto prazo de Wall Street e deu continuidade na sua estratégia de longo prazo, expandindo internacionalmente a operação da Netflix e investindo bilhões de dólares em conteúdo próprio. As preocupações do mercado em relação à queima de caixa devido aos altos investimentos em conteúdo próprio, se mostraram completamente infundadas, uma vez que o conteúdo original da Netflix tem sido uma das principais vantagens competitivas da companhia.
Simplesmente um movimento brilhante de Hastings, que, prevendo que seus competidores poderiam tirar do catálogo da Netflix grandes sucessos de audiência para disponibilizar exclusivamente nas suas plataformas, resolveu investir para produzir suas próprias séries de sucesso.
A estratégia da Netflix se mostrou extremamente acertada e acabou gerando um ciclo virtuoso de crescimento. Quanto mais sucesso suas produções próprias fazem, mais pessoas assinam a Netflix. Com mais assinantes na plataforma, maior a receita gerada. Quanto maior a receita gerada, mais a companhia investe na produção de novas séries e filmes.
Além disso, um outro ponto importante na estratégia da empresa foi a criação de uma plataforma global de produção de conteúdo. Se você parar para pensar, diversas séries de sucesso lançadas pela Netflix nos últimos anos foram produzidas fora dos Estados Unidos. Foi o caso de La Casa de Papel (Espanha), Dark (Alemanha), Peaky Blinders (Inglaterra) Round Six (Coréia do Sul), entre outros.

Levando em conta que, dos 232,5 milhões de usuários da Netflix atualmente, quase 70% são de fora dos Estados Unidos, Logo a estratégia de conteúdo global também se mostrou certeira. Mas as coisas estão mudando.
O Futuro da Netflix
Como vimos, a Netflix não se acomodou pelo fato de não ter tido concorrentes e investiu pesado para construir sólidas vantagens competitivas nestes últimos anos, tornando a vida dos novos entrantes extremamente difícil. Contudo, o cenário começou a mudar recentemente.
Em abril de 2022, pela primeira vez em dez anos, a Netflix registrou uma queda no número de assinantes. O anúncio de que a plataforma havia perdido 200 mil assinantes no primeiro trimestre do ano, contra uma expectativa de mercado de um aumento de 2 milhões de assinantes, fez com que as ações da companhia despencassem 35% em apenas um dia, representando uma queda de US$ 54 bilhões no seu valor de mercado.
Segundo os executivos da Netflix, o principal fator que impactou negativamente no número de assinantes foi a saída da empresa do mercado da Rússia, devido ao conflito com a Ucrânia. No trimestre seguinte, mais uma queda, dessa vez de 927 mil assinantes. A reação do mercado, porém, não foi tão drástica, visto que o esperado era a Netflix perder 2 milhões de assinantes.
Um dos fatores que contribuíram para o resultado acima do esperado, foi o enorme sucesso da quarta temporada da série Stranger Things e o crescimento no número de assinantes na Ásia e na América Latina. Ainda sim, mesmo com os números animando os investidores, vale ressaltar que essa foi a primeira vez que a Netflix registrou dois trimestres consecutivos de queda no número de assinantes na história.

Com isso, em resposta ao novo cenário desafiador de queda no número de assinantes, a Netflix se viu obrigada a tomar providências. Algumas delas logo deram o que falar, como no caso do fim do compartilhamento de senhas e na criação de um plano com anúncios. Desde então, as ações da companhia, que chegaram a acumular uma queda de mais de 60% ao longo de 2022, começaram a se recuperar aos poucos, e em 2023 estão subindo cerca de 6% no acumulado do ano.
Fora o conflito da Ucrânia e a piora no cenário macroeconômico global, com o aumento da inflação e a elevação das taxas de juros, a Netflix também vem enfrentando uma concorrência cada vez maior. Nos últimos anos, players de peso e com bilhões de dólares disponíveis para gastar, como Apple, Amazon, Warner e Disney, passaram a aumentar ainda mais seus investimentos nesse mercado.
Pra você ter uma ideia, em março de 2022, a Amazon comprou um dos maiores estúdios de Hollywood, o MGM, por mais de US$ 8 bilhões, visando aumentar o catálogo de filmes e séries para seus assinantes do Prime. Definitivamente, os tempos em que a Netflix nadava de braçada no setor de streaming parecem ter acabado, mas será que esse vai ser o fim da sua hegemonia?
Se quiser assistir esse documentário no nosso canal do YouTube, segue o link: